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Amor por comunicar e ensinar a palavra de Deus

6 Set 2024
Pade José Bortolini é Mestre em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, e escreveu vários livros na área bíblica. Colaborou na preparação das principais edições de Bíblia em língua portuguesa.

Com mais de cem livros publicados em diversos idiomas e uma carreira dedicada ao estudo das Escrituras, o padre José Bortolini, aos 72 anos, traz em sua trajetória um profundo amor pela Bíblia. Nascido em Bento Gonçalves, no interior do Rio Grande do Sul, ele encontrou sua vocação cedo e ingressou no Seminário Paulino ainda jovem. Desde sua ordenação em 1977, o biblista trilhou um caminho marcado pela formação sólida em Roma e uma vida pastoral ativa. Atua há mais de uma década na Paróquia Santa Suzana, como vigário. Em uma conversa especial para o Jornal Diocese em Ação, no Mês dedicado a Sagrada Escritura, ele compartilha suas experiências e reflexões sobre a fé, a missão e o valor das Escrituras.

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  1. Como nasceu a sua paixão pela Bíblia?

Eu fui criança da roça, onde em maio/junho deste ano, montanhas vieram abaixo por causa da enchente. Agricultores pobres, com dificuldades, defendíamos a vida. Meu primeiro presente foi uma enxadinha. Nos dias de chuva, meu pai nos lia histórias da Bíblia num livro feito de episódios importantes da Sagrada Escritura. Aí, creio, foi plantada a semente que deu frutos. Alguns anos depois, já no seminário menor, li a Bíblia inteira pela primeira vez (vieram muitas outras vezes). Confesso que lia por curiosidade (na Bíblia há coisas curiosas de montão). Hoje, olhando para trás, creio que em mim nesse tempo já brilhava uma lamparina bruxuleante que mais tarde se tornou fogueira. Como dizia o profeta Jeremias: “Quando se apresentavam palavras tuas, eu as devorava: tuas palavras eram para mim contentamento e alegria do meu coração” (Jeremias 15,16).

  1. Como foram os estudos específicos do senhor com relação à Bíblia?

Por estes tempos, completo bodas de ouro de contato com a Palavra de Deus. O Instituto no qual estudei teologia (e mais tarde dei aulas por 13 anos) sobressaía pelo peso dado à Bíblia em sua grade curricular. Viviam-se momentos de efervescência bíblica, motivados pelo Vaticano II que declara na Constituição dogmática Dei Verbum sobre a revelação divina (n. 24, novembro de 1965): o estudo da Sagrada Escritura é a alma da teologia. Lembro que, por exemplo, nas aulas (enfadonhas) sobre as cartas de Paulo, eu buscava os hinos e os transformava em orações para os momentos de espiritualidade. A teologia, portanto, foi um dos momentos fortes. Durante esse tempo – eu era apenas aluno de teologia – participei da preparação da inédita Bíblia de Jerusalém: estilo, revisão etc. Em 1981, fui forçado a optar quanto ao futuro. Eu já havia sido ordenado padre e trabalhava na redação de subsídios para celebrações sem a presença do sacerdote. E aí entra fortemente a Bíblia. Foi nesse período que fiz a estreia como escritor. Eu gostava demais do mundo da Liturgia. Mas a balança pendeu para os estudos bíblicos. Morei 4 anos em Roma, para sair de lá como Mestre em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico. Na volta ao Brasil, aulas, cursos, redação... poderia prosseguir longamente. Nos anos passados, entre tantas outras atividades, participei, em graus diferentes, na elaboração das seguintes versões de Bíblia: Bíblia de Jerusalém, Bíblia Sagrada edição pastoral; Bíblia do Peregrino (Paulus Editora) e Bíblia da CNBB.

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Padre Bortolini é vigário na Paróquia Santa Suzana. — Imagem: Pascom Santa Suzana.
  1. Como se deu o seu chamado à vida religiosa/sacerdotal?

Há algo misterioso – e diria sagrado – na minha história vocacional. Éramos 8 irmãos. Eu, o 7º. Minha mãe foi instruída por uma vizinha e incentivada a praticar aborto. Se ela tivesse dado ouvidos àquela instrução praticando o aborto, a irmã antes de mim e o irmão depois de mim não teríamos vindo ao mundo. Isso me leva a pensar em Jeremias, profeta vocacionado desde o ventre materno, e peço para aceitar-me na fila dos que tiveram a felicidade de saber-se amados por Deus antes mesmo de habitar o útero de uma mãe.

Não me lembro de haver dito algo reiteradamente afirmado por minha mãe, ou seja, que desde pequeno desejava ser padre. Naquele tempo, enchiam-se os seminários de crianças (eu entrei para o seminário quando tinha 11 anos). Nessa idade e com os parcos conhecimentos, padre era tudo igual, desconhecia a variedade de carismas religiosos. O pároco costumava reunir os candidatos todo primeiro sábado do mês. Celebrava a Eucaristia e jantávamos na casa paroquial (conhecida como canônica), porque nos eram passadas informações de como comportar-se à mesa. E visto que minha família morava longe (cerca de 6 km), eu dormia na canônica, preocupado com o perigo de, a comungar, a hóstia tocasse os dentes (era, diziam, pecado), pois eu me perguntava como o pároco fazia para não errar. Na manhã, outra missa e volta para casa, quase sempre a pé, pois não havia carro. Um padre paulino apareceu certo dia na paróquia e reuniu as mães que lá se encontravam. Perguntou-lhes se conheciam algum menino que tencionava tornar-se sacerdote, e eu fui citado. Daí à entrada no seminário menor foi questão de pouco tempo, e eu fui parar em Caxias do Sul, no seminário dos Paulinos.

Concordo com os que pensam ser crueldade arrancar crianças de suas famílias para encher os seminários. Mas, olhando de longe e serenamente os fatos, descubro pontos que podem ser considerados positivos. Por exemplo, quanto à formação acadêmica. A partir do primeiro ano do Ginásio, o seminarista recebia forte dose de instrução acadêmica com aulas nas seguintes disciplinas: latim (e mais adiante grego), inglês, francês, música, desenho, além das matérias tradicionais requeridas pela grade curricular.

Entrei no seminário na festa da conversão de Paulo (25 de janeiro de 1964), e nos primeiros dias não continha as lágrimas, nem podia evitar as chateações dos veteranos. Tínhamos todo mês sabatina das disciplinas da grade curricular. As matérias eram 13, e eu ganhei nota vermelha em 6. Escrevi para a família que viessem me buscar. Mas entre a carta que foi e a mãe e o irmão (era meu padrinho de Crisma) que vieram me buscar, eu completei 12 anos e ganhei uma sultana (bombom semelhante ao “Sonho de valsa”). E acabei ficando e enfrentando todos os reveses associados a esse estado de coisas.

  1. O que é o livro que chamamos de Bíblia?

Bíblia é palavra grega e significa livros. É uma coleção de livros. Foi se formando ao longo dos tempos (por alto, mais de 3.000 anos) reunindo tradições várias. O centro da Bíblia é Jesus Cristo, Filho de Deus enviado ao mundo. O tempo anterior a Jesus Cristo recebe o nome Antigo Testamento, e em seus livros encontramos a história do povo Israel, escolhido por Deus com a missão de torná-lo conhecido e aceito por toda a humanidade. Ponto interessante: a partir de Gênesis, capítulo 12, narra-se a vida de Abraão, pai do povo Israel. Ele viveu por volta de 1.800 anos antes do nascimento de Jesus. O povo de Israel só aprendeu a escrever e ler uns 800 anos depois de Abraão. Isso mostra que, antes de aparecer como texto escrito, a maior parte dos livros do Antigo Testamento foram primeiramente transmitidos oralmente em família, ao redor de uma fogueira nas festas. Quando aprendeu a escrever e ler, as histórias foram registradas por escrito. Além de história, o Antigo Testamento contém muitas outras formas de comunicar: textos proféticos, textos de sabedoria, orações... um mundo de informações.

A segunda parte da Bíblia é formada pelo Novo Testamento. Seu centro é Jesus Cristo, cuja vida, morte, ressurreição, estão registradas nos Evangelhos, tornadas conhecidas pelos apóstolos mediante suas cartas. Também aqui há várias formas de anunciá-lo. O último livro da Bíblia se chama Apocalipse, texto maltratado pelas interpretações erradas.

  1. Por que razão a Bíblia é considerada livro divino?

O começo de um livro do Novo Testamento chamado Hebreus afirma isto: “Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, aos pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-nos por meio do Filho...” (1,1). O Filho é Jesus Cristo. Nem Deus sozinho nem o homem a sós produziram aquilo que chamamos Bíblia, mas Deus juntamente com pessoas e pessoas amparadas por Deus. Então, melhor seria dizer que a Bíblia é um livro humano-divino e divino-humano. É humano-divino porque não se trata de sair deste mundo para receber a mensagem da Bíblia (Deuteronômio 30,14): “A Palavra está muito perto de ti: está na tua boca e no teu coração...”. Deus pôs dentro das pessoas a palavra. É livro divino-humano segundo o que está escrito no livro do profeta Amós: “O Senhor Javé não faz coisa alguma sem antes revelar o seu segredo a seus servos, os profetas” (3,17).

Isso tudo aconteceu ao descrever o surgimento da Bíblia. Deus se revelou à humanidade enquanto ela caminhava. Ele foi se revelando à medida que a humanidade avançava. Deus podia dar passos enormes, mas preferiu dar passadas de acordo com nossas pernas. Por isso se diz que a revelação é dinâmica, em crescendo, tendo em Jesus seu ponto alto. Portanto, não devemos nos espantar se o Novo Testamento corrige o Antigo; que o Antigo é incompleto sem o Novo.

  1. Como temos certeza de que, aquilo que Deus quis comunicar, chegou, de fato, a todos nós?

Deus escolheu um povo para que o anunciasse. Esta é a mais nítida demonstração do que significa a eleição/escolha de Israel. Em outras palavras, para que, aliando-se a ele, o apresentasse ao mundo inteiro. Numa de suas cartas, o apóstolo Paulo faz a seguinte declaração: “Todas as promessas de Deus encontraram em Jesus Cristo o seu sim. Por isto, é por ele que dizemos ‘Amém’ a Deus para a glória de Deus” (2 Coríntios 1,20). De acordo com esse texto, não há promessas de Deus a serem realizadas em nossa história.

Ao se despedir dos discípulos, Jesus deu-lhes a seguinte recomendação: “Ide e fazei que todas as nações se tornem discípulos... e ensinando-as a observar tudo quanto vos ensinei. Eis que estou convosco todos os dias até a consumação dos séculos” (Mateus 28,19-20).

Quando alguém recebe o Batismo, recebe também este mandato. E dizemos: estas palavras foram ditas também para nós. Assim nos tornamos missionários, como a Igreja é toda missionária.

  1. O Antigo Testamento tem 46 livros. A decisão foi tomada pelo Concílio de Trento, baseando-se na Tradição apostólica como garantia de segurança. Havia muitos outros?

A decisão acerca do cânone de ambos os Testamentos foi resultado suado. O Concílio de Trento (1545-1563) é o ápice desses debates. Amostra grátis é a definição daqueles livros que os protestantes chamam de apócrifos, ao passo que os católicos os tratam como deuterocanônicos. São eles: Baruc, Eclesiástico, Sabedoria, Tobias, 1-2 Macabeus, Judite, trechos do livro de Daniel e do livro de Ester. O critério adotado pelos protestantes para não os ter em suas Bíblias vem do modo como os judeus tratam esses textos. No Judaísmo esses livros são rejeitados por não serem ou não terem o original hebraico. Perdem-se riquezas enormes produzidas por tais textos. E às vezes podemos ter surpresas, como no caso do Eclesiástico. De um original hebraico fez-se a tradução ao grego. O texto em hebraico foi produzido por certo Jesus Ben Sira, e foi vertido ao grego pelo neto de Ben Sira. Uma cópia dessa versão chegou a nós. Nos arredores de Qumran, perto do mar Morto, no século passado, por acaso um pastorzinho à procura de uma cabra extraviada, encontrou uma série de grutas e ainda mais surpreendente nelas havia muitos manuscritos de vários livros do Antigo Testamento em hebraico. Entre eles, uma cópia completa do Eclesiástico. Peritos se dedicaram a decifrar o texto – quase sempre malconservado – e a estas alturas já foi traduzida mais da metade desse livro volumoso. E as diferenças entre o texto grego e sua matriz hebraica são muitas.

  1. O Novo Testamento se compõe de 27 livros, entre eles 14 cartas de São Paulo e 7 cartas “ditas” católicas. Elas não têm autor?

No século passado, entre os especialistas do Novo Testamento surgiram dúvidas quanto à autenticidade das cartas nele contidas. Por autenticidade entende-se autoria. Certas cartas parecem não ter sido escritas por Paulo nem pelos outros autores aos quais se atribui a autoria de uma carta.

Vamos por partes. Em primeiro lugar, vamos conhecer os possíveis autores, assim como aparecem nas cartas. De Paulo se diz ser autor destas cartas (em itálico, as cartas que poderiam não ser de Paulo): na ordem que aparecem, grosso modo da mais extensa à mais curta: Romanos, 1-2 Coríntios, Gálatas, Efésios, Filipenses, Colossenses, 1 Tessalonicenses, 2 Tessalonicenses, 1-2 Timóteo, Tito, Filêmon. Os motivos que levaram os especialistas a pôr em dúvida a autoria de Paulo são muitos: ausência dos grandes temas, estilo diferente, informações de caráter histórico etc. Hebreus não é carta (é um discurso ou sermão), não é de Paulo e não foi dirigida a hebreus. Temos, então, 7 cartas genuinamente paulinas. Ninguém duvida acerca do seu autor; e 6 cartas que teriam sido escritas por alguém em nome de Paulo (esse procedimento era comum naquele tempo). O que pensar disso? A tendência hoje é ser mais inclusivo e não separar.

Há outra série de cartas atribuídas a personagens importantes daquele tempo, mas podem ter sofrido o mesmo processo das cartas acima. São: A carta de Tiago; duas cartas de Pedro; três cartas atribuídas a João evangelista, uma trazendo como autor Judas. No Novo Testamento há, no começo, os 4 evangelhos, e no fim o Apocalipse.

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  1. Por que a Bíblia católica tem diferentes traduções?

Por trás de uma Bíblia há muitas histórias a contar, vidas inteiras dedicadas como serviço para o patrimônio da humanidade, sobretudo se levarmos em conta as Bíblias de estudo. Penso, sobretudo no século passado, o trabalho dos arqueólogos e suas escavações espalhadas por toda a região. Um arqueólogo escava com pincel e uma colherinha, e cada fragmento encontrado pode esconder um tesouro de informações.

Ao lado dos arqueólogos escavando sob o escaldante sol da Palestina, devemos colocar os copistas e também aqueles que preparam os materiais, alguns muito frágeis, como o papiro. No Cairo (Egito) encontra-se a genizá mais famosa. É um depósito onde são abandonados os manuscritos impraticáveis. Nós, habituados com a internet, dificilmente nos damos conta dos problemas enfrentados naqueles tempos.

As Bíblias de estudo, sobretudo aquelas que vieram das línguas originais, trazem um aparato crítico. Nele estudam-se as variantes. De determinado versículo se deseja chegar àquilo que seria a palavra inicial, chegar ao texto do autor. Não existe o texto original, produzido pelo autor. O que existe são cópias e mais cópias. Para que tenham uma ideia aproximada, o manuscrito mais antigo e completo da Bíblia Hebraica (da qual se traduz o Antigo Testamento) se encontra em Leningrado, com data de 1008.

Quando há mais de uma variante, cada uma recebe um peso, obtido mediante vários critérios. As variantes são A (certeza absoluta de ser a variante mais importante). B: menos certeza em relação a A. O peso C nos indica que estamos diante de variantes que se igualam no peso. D: Não se tem certeza de nada. Façamos um exemplo: Marcos 1,41: Jesus diante do leproso. Há dois modos de mostrar a reação de Jesus: ele “se encheu de compaixão” ou “ele se irritou”. O aparato crítico, após examinar os manuscritos mais importantes, dá peso D (não se tem certeza de nada). A ciência que trata de questões semelhantes se chama crítica textual. E a crítica textual tem uma das normas que diz: quando encontramos situações parecidas como esta, deve-se adotar a variante mais difícil. Concluindo: a atitude de Jesus diante do leproso deve ter sido de irritação, não certamente contra o doente, mas contra a exclusão e a falta de compaixão.

  1. Existe uma tradução oficial recomendada pela Igreja Católica? 

Devemos sem dúvida agradecer aos biblistas (é assim que são chamados) brasileiros por terem preparado várias versões da Bíblia, umas voltadas ao estudo, outras, com linguajar mais simples. Desse modo somos um dos países com maior número de traduções. Eu mesmo participei, em graus diversos, das atividades que levaram à publicação de várias edições (Bíblia de Jerusalém; Bíblia do peregrino; Bíblia Sagrada – Edição Pastoral). Apanhei muito defendendo aquela que para muitos mereceu o fogo (compare com os apóstolos surrados nos Atos dos Apóstolos 5,40-41). A diversidade é fonte de riqueza, e cada Bíblia tem seu perfil e valor. A CNBB tem sua Bíblia oficial, mas o desafio permanece: a linguagem. Neste país continente, a linguagem, a cultura e as formas de expressar a fé são muito diferentes. Como criar um texto acessível a todos? Seja como for, há uma enorme riqueza nesse campo. Certas expressões mudam de sentido quando se mudam as palavras. Exemplo: pense nos verbos dar e devolver, certo? Você se lembra desta frase dita por Jesus: “Dai a César o que é de César e dai a Deus o que é de Deus”? Lembra? Pois bem, eu descobri que em grego – a língua original do Novo Testamento – o verbo dar pode ser traduzido por devolver. Então Jesus teria dito: “Devolvei a César o que é de César, e devolvei a Deus o que é de Deus”. Percebeu a diferença? Mudando um pouco uma palavra o sentido muda. Certo? A frase se encontra em Lucas 20,25.

  1. Por que a Igreja Católica escolheu o mês de setembro como Mês da Bíblia?

Ao longo de um ano encontramos na Liturgia meses temáticos: são meses de intensa movimentação religiosa em torno de temas específicos. Por exemplo: agosto (mês vocacional), setembro (mês da Bíblia), outubro (mês missionário). Algum evento ou celebração dentro do mês é o ponto de partida para desenvolver e aprofundar o tema. Setembro é o Mês da Bíblia porque no dia 30 celebra-se uma das maiores personagens no campo da Sagrada Escritura. Estamos falando de São Jerônimo, e a seguir há dados e o motivo pelo qual se reveste de importância ímpar. 

Chamava-se Sofrônio Eusébio Jerônimo. Nascido dálmata, em Estridão (hoje Croácia), por volta de 347. Sua família era cristã e rica, e isso lhe proporcionou excelente preparação intelectual associada a conhecimentos adquiridos das muitas viagens. Experimentou a vida sem freios, entregue aos vícios em Roma, deixando-se levar pelos prazeres. Percebendo o erro, converteu-se e entregou-se à vida contemplativa. Contam que ao arrepender-se dos erros, batia no peito com uma pedra. Numa de suas viagens, encontrou-se na França, onde conheceu um monastério e decidiu retirar-se para viver em contínua contemplação. Foi para o deserto da Síria, transcorrendo os dias em jejuns e penitências. Em 375, depois de uma doença, Jerônimo passou ao estudo da Bíblia com renovada paixão. Foi ordenado sacerdote pelo bispo Paulino, em Antioquia (ano 379). A seguir, decidiu tornar-se monge. Foi escolhido para ser secretário do papa Dâmaso (ano 382), que o encarregou de fazer a tradução da Bíblia (do grego e do hebraico) para o latim. Não havia ainda uma tradução completa, e Jerônimo aproveitou algumas partes já existentes, corrigindo-as, melhorando-as e anexando-as à sua tradução. Fez esse trabalho difícil e delicado na gruta onde se acreditava tivesse nascido Jesus, em Belém. Nesse trabalho, dedicou quase toda a sua vida. Conhecedor das línguas bíblicas, conseguiu realizar o pedido do papa Dâmaso. Porém, ele mesmo narra um episódio inesperado. Estava traduzindo o livro de Daniel, quando, em 3,8, dá de cara com kol kobel dená. O que é isso? Era a parte aramaica de Daniel. E Jerônimo não conhecia o aramaico. E teve de parar a tradução e estudar o novo idioma. A tradução realizada por Jerônimo foi chamada “Vulgata”, ou seja, “Popular”. O Concílio de Trento tornou-a o texto oficial para a liturgia e outras necessidades. E assim foi, e foi até o Vaticano II (década de 1960).

Jerônimo faleceu no ano 420, em Belém. É grande sua contribuição para os estudos de Bíblia. Recentemente ficou pronta a reedição corrigida da Vulgata, que passou a se chamar Neovulgata. É uma edição de estudo, e a tradução do Antigo Testamento é muito aderente ao original hebraico. Aqueles que não nutriam simpatias em relação ao seu caráter e o chamavam de “exegeta rabugento” bem que podiam ter mudado o refrão e considerá-lo o criador do dia da secretária e pai protetor dos que se dedicam ao estudo e traduções da Bíblia.

  1. Por que os fiéis leigos costumam dizer que é “difícil” ler e entender os livros da bíblia? Seria necessária uma nova tradução, digamos, mais didática?

E eles têm razão, em parte. Quais os fatores que contribuem para que a Bíblia se torne um texto difícil? Vou enumerar alguns, mas certamente não todos. 1. Livro antigo, distante no passado. 2. Por ser livro antigo, cultura, costumes, instrumentos, objetos de uso pessoal não são os mesmos lá e cá. Experimente pôr lado a lado os materiais de escrita de 500 anos antes de Cristo e a mesa do seu computador, com impressora, celular etc. Temos pouco conhecimento de como eram as coisas séculos atrás. Um exemplo: Certa ocasião, na minha sala de trabalho entrou Dona Rosa com o cafezinho. Aproveitei e lhe perguntei o que era um abutre. Ela respondeu: “Para mim, é um homem assim, assim...”. Não, Dona Rosa. Abutre é ave carniceira comum na Palestina e inexistente no Brasil. É preciso encontrar um correspondente em nossa cultura, por exemplo, urubu. 3. Traduções malfeitas. Em Mateus 7,17 se fala de “árvore má” que dá frutos ruins. Pergunto: existe árvore má? O espinheiro é árvore má? Não senhor! Não se atribui valor moral a um arbusto. Tente substituir “árvore má” por árvore doente, e verá que isso se torna claro. Assim: “Árvore doente dá frutos ruins”. 4. Certos grupos cristãos que fazem uso incorreto da Bíblia, tornando-a “casa assombrada”. Grupos cristãos fazem da Bíblia instrumento para incutir medo nas pessoas. 5. Interpretar os textos ao pé-da-letra. E há muitos outros fatores.

  1. A Lectio Divina, método mais antigo de leitura da Bíblia, precisa voltar a ser posto em prática na atualidade?

A Lectio Divina ou leitura orante da Bíblia é a escola do Espírito Santo nos ensinando a buscar na Palavra de Deus o alimento para a nossa jornada. Foi muito praticada – sobretudo nas Ordens e Congregações religiosas do passado – e é excelente exercício que nos põe em comunhão com a Palavra de Deus. Costuma ter basicamente estas etapas: Leitura, meditação, oração, acrescentando a prática ou ação. É bom que seja feita em grupos. Os participantes precisam se despojar de todo sentimento ruim, como Moisés foi convidado a tirar o calçado diante do mistério.

  1. Hermenêutica e Exegese bíblica são para todos?

São duas etapas do estudo da Bíblia. Sem hermenêutica (palavra que lembra interpretação), o texto bíblico fica engessado no seu tempo, sem tocar a realidade. Sem exegese (a palavra significa puxar para fora, extrair) arrisca-se fazer o texto bíblico dizer o que nós queremos e não aquilo que o Espírito Santo espera de nós. É praticamente trabalho de peritos. O povo já está hermeneutizando, pois não deixa de aplicar à vida de cada dia a mensagem que brota de um texto bíblico.

  1. O que significa, de fato, a animação bíblica?

A meu ver, a animação bíblica é o que se faz na pastoral bíblica: convocar, anunciar, estimular a partir da Sagrada Escritura. Dois textos, em épocas diferentes, se implicam e se completam. O primeiro é a Constituição dogmática Dei Verbum sobre a divina revelação. Aí se afirma que o estudo (da Bíblia) é a alma da teologia (n. 24). O segundo é a Exortação apostólica Verbum Domini de setembro de 2010. O grande passo que somos chamados a dar é tornar a Bíblia a alma da pastoral. O que isso significa? É fazer com que toda atividade pastoral de uma comunidade nasça da Bíblia, se inspire nela e faça dela o motor, a alma.

  1. Como fazer a Palavra de Deus chegar às mãos dos jovens e crianças?

Crianças e jovens são seres muito sensíveis e cheios de fantasia. Na Bíblia também encontramos essas características. Quanto às crianças, é preciso pôr em suas mãos os textos da Bíblia e ler para elas e com elas. A catequese é uma grande oportunidade que, se bem aproveitada, dá bons resultados. Conheci um senhor, pai de dois meninos, que só dava livros como presentes. Conseguiu fazer o livro entrar no dna dos filhos. Subsídios para isso tem de montão. Com os jovens, se não foram levados a gostar da Bíblia, a situação não é fácil. Mas é possível fazer algo no período de preparação para a crisma. Penso que os jovens podem ser motivados quando descobrirem que há um laço entre as situações ou realidades que eles apreciam e as grandes lições que a Bíblia propõe. Por exemplo: ecologia, meio ambiente, um mundo melhor são realidades pelas quais tanto os jovens quanto a Bíblia se interessam. Mas do jeito que as coisas andam, o desconhecimento e o fascínio de outras realidades sufocam a semente indefesa. Os jovens, com a Bíblia, encontram outros jovens do passado que podem indicar-lhes o caminho da plena realização.

Pe. José Bortolini

Pe. José Bortolini nasceu em Bento Gonçalves (RS) aos 15 de Abril de 1952. Foi ordenado Presbítero por Dom Francisco Manuel Vieira, então Bispo da Região Episcopal Osasco (São Paulo) no dia 4 de dezembro de 1977 e atualmente é vigário paroquial na Paróquia Santa Suzana, Forania Morumbi, Diocese de Campo Limpo. É Mestre em Sagrada Escritura pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma, e escreveu vários livros na área bíblica. Colaborou na preparação das principais edições de Bíblia em língua portuguesa.

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