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Ano Jubilar

A esperança nos escritos de Paulo apóstolo

Nossa Diocese, entre outras atividades, se propôs ouvir o que Paulo apóstolo tem a nos dizer a respeito da palavra esperança/esperar e similares: ela comparece cerca de 40 vezes em suas cartas.
 |  Pe. José Bortolini  |  Diocese
Foto: Unplash

Estamos em pleno ano jubilar. É tempo especial, nos ensina a Sagrada Escritura, não tanto por sua data quanto pelas situações que o suscitam. Todo ano jubilar traz um tema provocador que exige respostas e posturas aptas a fazer o povo caminhar. Diante de realidades chocantes como Covid-19 e frente os já ardentes índices do efeito estufa, que vem como força de morte, tentemos ouvir os gemidos da criação capaz de gritar a nossos ouvidos “Não te mates matandonos”, o ano jubilar se apresenta a nós para que entendamos o momento como arrependimento e retomada da caminhada. Para isso somos ajudados pelo tema escolhido (“Peregrinos da Esperança”) que reconhece ser este o momento de graça.

Nossa Diocese, entre outras atividades, se propôs ouvir o que Paulo apóstolo tem a nos dizer a respeito da palavra esperança/esperar e similares: ela comparece cerca de 40 vezes em suas cartas.

Em vez de fazer desfilar a procissão das ocorrências preferiu-se escolher para estudo, reflexão e atividade pastoral 2 textos importantes: 1ª Carta aos Tessalonicenses (envolvendo também 2Ts); Romanos 5.

Primeira Carta aos Tessalonicenses

1 Tessalonicenses: primeiro texto do NT (ano 51). Não se tem acesso à catequese anterior à carta. Isso denota a ancianidade das três virtudes maiores e do modo como se chegou à sua formulação. Nesta ordem – fé, amor, esperança – cada qual com sua característica: a fé é ativa, o amor é capaz de sacrifícios e a esperança é perseverante em Jesus (1,3). Prefiro amor à desgastada caridade porque, tenho a impressão que o amor, sim, é capaz de grandes feitos (Jesus morreu por amor)...

É o esquema muitas vezes usado por Paulo e se encontra também em Rm 10,14-15. Para ser corretamente entendido deve ser lido do fim ao começo: “Como poderiam invocar aquele em quem não creram? E como poderiam crer naquele que não ouviram? E como poderiam ouvir sem pregador? E como podem pregar se não forem enviados?”

Note-se o esquema recorrente: há um enviado, cuja mensagem é acolhida por assembleia disposta, e tal disposição a leva a crer, e crendo invoca (com confiante esperança).

Esse esquema é usado por Paulo em quase todas as cartas e é a essência do seu apostolado, que põe o anúncio em primeiro lugar. A fé é dita ativa, e a carta demonstra isso lembrando o rompimento com a idolatria (1,9-10) praticado pelos tessalonicenses, fazendo brotar desde já a esperança. Fé ativa, resultado: rompimento com os ídolos.

Abandonada a ligação com os ídolos (tendo aderido à pregação de Paulo), como prova de mudança de vida o adulto se faz batizar e se insere numa comunidade. O batismo é divisor de águas. Um estilo de vida (ídolos) precisa ser abandonado e abraçar nova forma de relações (comunidade/irmãos). É a primeira vez que o NT caracteriza os batizados como irmãos. Paulo fica furioso quando o “antes” encontra abrigo entre os irmãos. Em outras cartas usa imagens como “sem fermento”, “lavados”, “revestidos do novo”, “filhos da luz” e uma série de comparações, para mostrar que estamos diante de algo totalmente novo. Batizavam-se adultos, à beira de tanque cheio d’água. Imergindo totalmente o batizando morre para o passado (morto em Cristo) para emergir criatura nova (ressuscitado em Cristo), para caminhar na esperança. Os textos que têm esse esquema por base são muitos, mas podemos sintetizar com Colossenses 3,1-4: “Se ressuscitastes com Cristo, procurai as coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus. Pensai nas coisas do alto e não nas da terra, pois morrestes e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é vossa vida, se manifestar, vós também com ele sereis manifestados em glória”.

Sem mencionar a esperança, Paulo a supõe como presente e essencial na vida do seguidor de Jesus

O tema “comunidade de irmãos” tem dimensões amplas, sem confins. O ato de ser batizado o demonstra, pois, ao emergir da água, o batizado, além de ser revestido com vestes que recordam que o batizado encontrou sua identidade como cristão. De fato, além da roupa limpa, lhe era entregue um mandato que se encontra em Gálatas 3,28 e soa assim: a partir de agora não há mais diferença entre judeu e grego (raça), entre escravo e homem livre (condição social), entre homem e mulher (gênero). Essa fraternidade universal não admite exceção ou segregações, mas cria a mentalidade – igualmente reiterada em outras cartas de Paulo –, de corpo, tendo Cristo à frente, com cabeça.

Alguns acusam Paulo de ser teórico, sem se preocupar com as causas da discriminação. Certo, ele pouco ou nada podia fazer diante do ingente poderio 3 econômico (o império romano), no qual a escravidão constituía a espinha dorsal. Não pôde mexer na macroestrutura do fenômeno que produz a escravização, mas quando tinha condições de fazê-lo não se omitia. Para entender esse fenômeno precisamos estudar e aprofundar a menor de suas cartas, a Filêmon, pois aí há o enfrentamento decisivo. O que faz e como reage um patrão cristão em relação a um escravo que se tornou cristão/irmão? Há um antes e um depois em tudo isso?

Normalmente o não cristão também cultiva a esperança, mas numa dimensão que não transcende o horizonte de nossa história. É isso que podemos ver em 1 Coríntios 15,19: “Se temos esperança em Cristo (expressão que significa como cristãos) somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens”. Aqui fica aberta a porta para os que não têm esperança (4,13).

O amor é classificado como “capaz de sacrifícios”. Na carta encontramos uma exortação para que se levem em consideração as pessoas que se sacrificam pela comunidade (5,12-13). E alerta para que se tomem decisões quanto aos que vivem desordenadamente, ou seja, diante da possível iminente segunda vida do Senhor, desistiram de trabalhar, tornando-se peso para os outros (4,9-12). Na segunda carta esse tema voltou com maior intensidade. Pouco valeu a exortação de Paulo.

Paulo chama para si a questão do amor capaz de sacrifícios. E em duas admiráveis passagens ele se compara à mãe que é ternura com as crianças, responsável pela formação “em casa” (2,7-8), e afirma agir como pai que, nos padrões culturais do tempo, se responsabiliza pela educação do menino na rua e no meio do povo (2,11-12).

O estilo de vida que transpira em comunidade é o amor fraterno (4,9a), e logo mais pede-se consideração pelos que se afadigam nela e por ela. Paulo usa o mesmo verbo (kopiao) ao caracterizar o amor e a dedicação com que alguns se desdobram em benefício da comunidade (1,3 e 5,12). A fadiga dos que se dedicam é amor que se sacrifica. O amor de alguns pela comunidade enfrenta qualquer forma de sacrifício.

Como pudemos ver até aqui, as três virtudes estão entrelaçadas. Uma não existe sem a outra. A fé, nascida do anúncio leva ao batismo, à participação numa comunidade de irmãos, que caminham com força interior que se chama esperança. Os cristãos não são apenas peregrinos da esperança. Ela não existiria se não fosse como que gerada pela fé e pelo amor. Ela é exigida, pois o amor cria suas próprias leis e nasceu com vocação de se eternizar.

Entre os anúncios da pregação de Paulo encontramos o tema da segunda e iminente vinda do Senhor. Mas alguns fatores o levaram aos poucos a redimensionar sua perspectiva. A demora do retorno iminente do Senhor, a morte de pessoas da comunidade, o abandono por parte dos que antes se ocupavam honestamente de seus afazeres, vivendo pior do que viviam no “antes” de aceitar o Senhor, suscitaram em Paulo prudência para evitar entendimentos errôneos.

Ele quer deixar claro que subsistem o antes e o depois, inconciliáveis. Começa aqui a se formar o conceito de pertença e destinação do corpo das pessoas. O antes pode ser identificado com a cultura do tempo e lugar, onde a vida é cadenciada pelo carpe diem (desfruta, goza, aproveita...), “pois do mundo nada podemos levar” (1 Timóteo 6,7).

Opõem-se ao antes o hoje e o amanhã. Fica assim estabelecida a separação dos campos, e quanto ao futuro, os que vivem no antes. Eles não têm esperança. E os cristãos que morreram recentemente? Paulo afirma, apesar dos percalços, uma límpida verdade: eles estão com o Senhor, e lá estarão também os que estiverem vivos por ocasião de sua volta.

Está traçada a destinação do corpo, tema que será aprofundado em 1 Coríntios 6. Aí se diz – em meio a forte corrente contrária que via as coisas sob a perspectiva de Platão – sem sombra de dúvida que há um senhorio quanto ao corpo e esse senhorio é do Senhor. A matéria está destinada à ressurreição, a formar uma só realidade, como é declarado em 1 Coríntios 15,28 “para que Deus seja tudo e todos”.

Aqueles que não aceitaram Jesus também têm esperança, mas trata-se de algo que não transcende o horizonte de nossa história e não ultrapassa aquilo que o olhar humano alcança ver. A grande diferença que há nisso tudo é que “a esperança é a última que morre”. Mas morre, ao passo que para o cristão, onde morre a esperança puramente humana nasce a esperança segundo a qual se canta: “O que os olhos não viram, nem os ouvidos ouviram, e o coração do homem não percebeu tudo o que Deus preparou para os que o amam” (1 Coríntios 2,9 citando Isaías 64,3).

A esperança nos ensina que os tempos e lugares de Deus não são os nossos. Agrega-se à virtude a qualificação perseverante. Isso nos leva a imaginar o contexto no qual a esperança lançou raízes: muitas dificuldades. Perseverança se diz em grego ypomonê. Esta palavra é formada de ypo (sob, debaixo) e meno (permanecer). Não se trata de permanecer passivamente sob o peso dos problemas, conflitos e toda adversidade. Há um sentido de resistência ativa, crendo que nossas forças são mais fortes que as adversidades. A esperança brota 5 dos lugares mais insólitos. Mas brota com a certeza da vitória. Quanto durará o tempo da ypomonê só Deus sabe. E não conhecer esse tempo, diferente do nosso pois é tempo de Deus, não nos desencoraja, pois é na perseverante esperança que nos descobrimos luz e filhos do dia.

Vamos concluir a primeira parte vendo os contrastes que Paulo estabelece como força positiva à nossa disposição para bem cuidar da casa comum.

O “antes”

Não há esperança. São tristes

Surpreendidos de noite por ladrão

As inesperadas dores de parto

Andam nas trevas

 Paz e segurança*

Deus surpreende como ladrão

 Dormem

Embriagam-se à noite

Dormem desarmados

O chamado que lhe é feito

Têm esperança

Consolam-se

Vigilância

São filhos da luz

Estar vigilantes

Vigiar de noite é mais necessário

São do dia

Vestem couraça da fé, da caridade,

o capacete da esperança e da salvação

*Paz e segurança era o refrão dos defensores da Paxá Romana, ideologia que no fundo afirmava haver paz no mundo graças à dominação das legiões romanas. Paz de cemitério.

Paulo

Romanos 5

A esperança cristã é a porta de entrada que leva onde a esperança puramente terrena não entra e por isso “podemos orgulhar-nos esperando a glória de Deus” (Romanos 5,3). A carta fala de tribulações como motivo de gloriar-se. O que são e em que consistem as tribulações? Não representam uma situação qualquer, mas as pressões que o povo de Deus enfrenta em seu caminho de fidelidade. A tribulação em si não deve ser buscada, pois onde há tribulação é sinal de que ainda não se alcançou a paz que vem da justiça.

Assim entendida, a tribulação é treinamento para adquirir resistência. Quem resiste supera a prova e – com surpresa – espera-se. E a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nosso coração.

O povo de Deus do Antigo Testamento viveu no passado experiências que iluminam a caminhada das comunidades. (Lembrete: A Carta aos Romanos foi escrita quando na capital do império governava Nero, o assassino dos cristãos, que para eliminá-los, acusou-os de incendiarem a cidade.) Lembremos o tempo do deserto (Êxodo 16-17), quando o povo reclamou agressivo a falta de água e 6 de alimentos. A estadia no deserto e sua precariedade são ações pedagógicas que treinam os “Peregrinos da esperança”. Quem está habituado com a abundância, dificilmente se adapta à vida precária, onde não há abundância, e com dificuldade aceita que, apesar da exiguidade, a vida vai resistindo. “E a esperança não é traiçoeira”. Novamente os episódios dos capítulos 16 e 17 do Êxodo. O povo acusa Moisés de traição, conduzindo-o ao deserto para fazê-lo morrer de fome. Quem está errado: Moisés ou o povo? Acossado pela tribulação, o povo transforma o reino da morte (Egito) em paraíso de delícias. De fato, a queixa dos hebreus contém a menção de comida abundante no Egito, carne à vontade, um banquete!... O caldeirão da opressão se tornou país de delícias. O que faz o mau entendimento da esperança... O esquema do Êxodo: sair da escravidão por acreditar na promessa da terra, objeto da esperança; entre a saída e a chegada, a promessa e a posse, age a esperança; ela é requisitada para qualquer situação que dela sinta necessidade. Não se pode menosprezar a necessidade da esperança. Sem ela, fazemos da mentira a verdade, e consideramos um inferno ter de conviver com a precariedade. O alimento considerado variado e abundante é mentira. Como pode haver abundância de carne para trabalhadores escravos?

Por que a esperança não engana? Por trás dela atua o Espírito. Paulo transmite a própria experiência como fariseu irrepreensível. Ele havia conquistado esse troféu ao se tornar rigoroso executor dos 613 mandamentos da Lei escrita e da Lei oral. Pensava, praticando rigorosamente todas as regras, poder manipular a Deus, obrigá-lo a abençoar esse fariseu campeão que, além disso tudo, ainda lhe sobrava tempo para amaldiçoar os pobres, os doentes, os aleijados, os analfabetos, pois não sabendo ler também não praticava a Escritura, e a doença, a paralisia e outros males eram castigo de Deus por sua conduta. Malditos pobres, doentes, ignorantes... pois são eles, com seu comportamento, os que atrasam a vinda do Messias.

Tudo isso foi ao chão na vida de Paulo quando percebeu que, apesar de ninguém ser perfeito, ninguém merecer, o Messias veio “quando ainda éramos pecadores”. Deus é gratuidade absoluta. Ninguém com os próprios méritos pode obrigá-lo, pois ele veio quando ainda éramos pecadores. Esta é a razão pela qual a esperança não decepciona, não engana, não trai. A casa do fariseu Paulo caiu, perda total, mas os pilares e as colunas permaneceram de pé: representam a esperança que não ilude.